Já
estávamos no fim de mais uma jornada de trabalho. Passava-se das vinte e
três horas de uma monótona segunda-feira, dia geralmente tranquilo no
que tange à criminalidade violenta, cujo combate era nosso principal
mister.
Patrulhávamos
o Bairro Nova Pampulha, numa região conhecida como “mangue seco”. Tal
denominação não foi escolhida por acaso. As ruas do local eram todas de
terra; parte delas intransitáveis, devido a enormes crateras provocadas
pela voracidade das águas pluviais.
Os
lotes lindeiros lembravam a vegetação da caatinga. As residências eram
construídas precariamente, a maioria delas não possuía reboco, o que
contribuía para o aspecto desértico do local.
Neste
cenário nada inspirador, ocorreu uma situação cômica, envolvendo uma
guarnição do GIEAR (Grupo de Intervenção Estratégica em Áreas de Risco);
mais precisamente aquela estava sob meu comando.
Quando
descíamos a rua vinte e cinco, uma das poucas que era possível
percorrer embarcado na viatura, deparamos com um sujeito franzino, alto,
moreno escuro (não é eufemismo, ele realmente não era negro), trajando
roupas simples e empurrando uma bicicleta, a qual era tão velha que só
servia mesmo pra empurrar.
O motorista da equipe, Soldado Marcel, menciona: “Vamos abordar?”. Nosso patrulheiro, Cabo Araújo, acrescenta: “Só pra não perder o costume, nesta hora, andando na favela, tem mais é que tomar geral”.
Mesmo acreditando não se tratar de um suspeito em potencial, decido pela abordagem.
O
suspeito estava do lado esquerdo da viatura, nesse caso quem efetua o
“enquadramento” é o motorista ou o patrulheiro. O Soldado Marcel
encarregou-se da missão: “Pare. Larga a bicicleta. Coloca as mãos na cabeça. Abra as pernas”. O abordado acatou as ordens sem pestanejar. O militar iniciou a busca pessoal.
Cumpre registrar que um pouco antes do fato ora narrado, Marcel havia dito: “Pô Sargento, nós já estamos indo embora e não prendemos ninguém ainda”.
Marcel
é daqueles policiais que não conseguem dormir se passar um dia sem
tirar um infrator das ruas. Cansei de tentar persuadi-lo de que o dia
que trabalhamos pouco é porque trabalhamos bem, haja vista que nossa
missão é prevenir.
Evidentemente,
interpretei a pronúncia do soldado como brincadeira, contudo comecei a
me preocupar no instante que Marcel passou a interpelar o suspeito,
dando a entender que realmente não queria ir embora sem prender alguém.
- Seu Nome?
- Abraão - respondeu o jovem, já com as pernas trêmulas.
- Abraão. Então foi você quem traiu Jesus - afirmou o militar, aumentando o tom de voz.
- Não, senhor, eu sou Abraão, o Rei das Nações.
- Que rei o quê, tá achando que eu sou otário, foi você mesmo que mandou enforcar Jesus.
Neste
momento, preparava-me para apartar a discussão quando percebi a cara de
deboche do Soldado Marcel e constatei que ele estava de gozação. Por
outro lado, o Cabo Araújo, acreditando que aquilo terminaria em
“desacato” utilizou-se de seus vastos conhecimentos bíblicos, pois é
evangélico praticante, e disse : “O rapaz está certo. Quem traiu
Jesus foi Judas, e Abraão foi mesmo o Rei das Nações. E tem mais, Jesus
não foi enforcado, mas sim crucificado”.
Assim,
Marcel soltou o suspeito e todos nós começamos a rir do episódio e
ainda tivemos uma pequena aula litúrgica, haja vista que o então
suspeito também era evangélico fervoroso.
Não sei o que aconteceria se o nome do rapaz fosse Judas...
Fim
Autor: Nivaldo de Carvalho Júnior, 3º Sgt PM
Nota:
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, fatos e lugares são
frutos da imaginação do autor e usados de modo fictício. Qualquer
semelhança com fatos reais ou qualquer pessoa, viva ou morta, é mera
coincidência.
"É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” - Inciso IX do artigo 5º da Constituição Federal.
Diário de PM/BM
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